Você perdoaria uma traição ou faria um ‘chá de revelação’?
Após a dor da traição, surgem os dilemas emocionais: é possível reconstruir o amor ou o melhor caminho é se libertar? Especialista analisa os impactos da infi delidade e os desafi os de conti nuar ou recomeçar.
Depois da polêmica do “chá revelação de traição” que viralizou em todo o país, O Estafeta buscou entender os impactos emocionais e sociais de uma exposição tão intensa nas redes sociais. Para isso, entrevistamos a terapeuta Rosangela Matos, que analisa o caso sob a perspectiva da saúde mental, do comportamento humano e das consequências que situações como essa podem gerar na vida dos envolvidos. A especialista fala sobre os efeitos da humilhação pública, os riscos da superexposição e a importância do acolhimento emocional — especialmente em momentos de dor e ruptura.
O Estafeta: Como você analisa o momento vivido pela Natália?
Rosangela Matos: O que a Natália fez foi um grito de dor e liberdade. Depois de tanto tempo silenciada, desacreditada e tentando segurar sozinha uma história pesada, ela buscou retomar o controle da própria vida. Quando alguém se sente completamente impotente diante de uma situação, é comum surgir a necessidade de fazer algo que interrompa o ciclo da dor. Muitas vezes, isso acontece de forma impulsiva, como um gesto urgente para não adoecer de vez. A exposição pública foi um movimento extremo de alguém que já não suportava mais fingir que estava tudo bem.
Foi um gesto desesperado, revoltado, cansado. Uma tentativa de mostrar o quanto estava ferindo. Uma forma de dizer: “não fui eu que destruí esse casamento”. Quantas vezes ela foi desacreditada? Quantas vezes disseram que era exagerou, que era coisa da cabeça dela? Essa exposição foi também um pedido para que sua dor fosse validada. Para que ficasse claro que ela não estava inventando nada.
As redes sociais amplificaram esse gesto. Ela foi acolhida e atacada. O que antes era segredo de casal, virou pauta nacional. A intimidade dela foi exposta, e agora ela precisa lidar com julgamentos, rótulos, críticas, interpretações… Precisa lidar com o fato de que, para muitos, sua dor virou entretenimento. O filho dela vai crescer com essa história, e isso vai reverberar por muitos anos.
Ela precisava tomar decisões difíceis, e talvez tenha exposto tudo como única forma de não voltar. Um movimento para marcar um ponto de não retorno. Mas, em muitos casos como esse, o casal acaba voltando. Vimos isso com Mayra Cardi e Arthur Aguiar, e mais recentemente com a cantora Iza, que após a traição do zagueiro Yuri Lima decidiu retomar o relacionamento. Quando há filhos, rotina, dependência emocional e uma exposição que pode gerar culpa, sair se torna mais difícil requer estrutura emocional e prática.
No vídeo da Natália, o que menos se via era um casamento. Eram duas pessoas dividindo um teto, mas não dividindo vida, sonhos ou construção mútua. Não havia parceria, presença ou compromisso verdadeiro. Apenas convivência, aparência, talvez medo do fim.
A traição deixa uma ferida profunda. A exposição pode ser uma tentativa sincera de reparação, mas também pode ampliar o sofrimento. Porque em muitos casos, não falar não é sobre preservar o outro. É sobre preservar a si mesma. A exposição acarreta ônus e bônus. Alivia a dor de carregar sozinha, mas cobra o preço de lidar com o julgamento alheio. E agora, a Natália vai ter que sustentar essa história com o mundo inteiro olhando.
Ainda há um ponto importante: o comportamento dele. Um homem que trai por tanto tempo e guarda provas, talvez não esteja tentando esconder. Quando alguém mantém rastros do próprio erro, mesmo podendo apagar, é porque se sente seguro demais. É uma forma de dizer, mesmo sem palavras: “posso fazer isso e ainda manter meu lugar”. Há nisso uma afirmação de poder, de quem já não teme mais as consequências.
No fim, não cabe a nós julgar. Mas é preciso reconhecer que o que ela fez nasceu de uma dor muito real. E por mais que a Internet debata se foi certo ou exagerado, quem já viveu algo parecido sabe: às vezes, a única forma de continuar é dar um basta tão grande, que não reste caminho para voltar.
O Estafeta: Ela agiu de forma correta ao seu ver?
Rosangela Matos: Não é uma questão de certo ou errado. É sobre o ponto de ruptura de alguém que, depois de tanto tentar manter tudo no lugar, sentiu a dor transbordar. A atitude da Natália foi o limite entre suportar e sobreviver. Cada mulher sabe onde esse limite se encontra. Algumas demoram anos para admitir que passaram dele. Outras, quando chegam lá, fazem o que conseguem com a força emocional que ainda resta.
Já acompanhei casos assim. Uma mulher que, depois de anos sendo chamada de louca e de inúmeras tentativas frustradas de sair de um relacionamento abusivo, decidiu tornar tudo público. Para ela, a exposição foi uma libertação. O constrangimento impediu o retorno. Ela disse: “agora que todos sabem, eu não posso voltar para onde quase me perdi de vez”.
Mas também acompanhei o contrário. Uma mulher que expôs uma traição e, ao se deparar com a repercussão daquilo, mergulhou em culpa. Não suportou o peso das consequências. Voltou para o relacionamento. E isso trouxe ainda mais sofrimento.
Por isso, o foco não deve estar em julgar, mas em entender o que leva uma pessoa a esse ponto e, principalmente, quais serão os impactos disso em sua vida. Nem toda atitude extrema é sobre coragem ou fraqueza. Muitas vezes, é sobre urgência emocional.
O Estafeta: O que fazer nesses casos?
Rosangela Matos: O primeiro passo é escutar a própria dor com seriedade. Muitas mulheres sabem o que estão sentindo, mas se sabotam com frases como “não é tão grave assim” ou “tem gente passando por coisa pior”. Antes de qualquer decisão, é preciso deixar de se invalidar.
Só depois de validar sua dor é que você consegue pensar com mais clareza. Reagir no calor do sofrimento pode te colocar em situações das quais será difícil sair depois. O maior perigo não é sentir raiva, é agir sem estrutura emocional e depois não conseguir sustentar as consequências. É necessário avaliar todos os aspectos – emocionais, práticos, sociais – antes de escolher qual movimento fazer.
O Estafeta: Como identificar se estou em um relacionamento tóxico?
Rosangela Matos: Relacionamentos tóxicos não são definidos apenas por brigas ou traições, mas pela perda gradual de quem você é. Toda relação que gira em torno do poder de um sobre o outro, que te faz pedir desculpas por sentir, esconder partes de si para evitar conflito, e duvidar da própria percepção da realidade, precisa ser vista com atenção.
O tóxico não começa gritando. Ele começa sútil, nos silêncios que você aprende a aceitar, nas concessões que você faz para manter a paz. Quando você percebe, já não se reconhece mais. A vida vira um ciclo: uma fase de alívio, uma fase de tensão, uma fase de conflito, outra de arrependimento, promessas e recomeços. E o ciclo se repete, silenciosamente. É um processo quase hipnótico.
O Estafeta: Quais os sinais mais sutis de abuso emocional?
Rosangela Matos: Os abusos mais perigosos são os que confundem, não os que ferem visivelmente. Quando o outro invalida sua dor e ainda faz parecer que você é a responsável. Quando muda os fatos e te convence de que sua memória está falhando. Quando sempre há uma explicação para o comportamento dele, e no fim você é quem se sente errada. Isso é gaslighting.
Outros sinais: pedir desculpas o tempo todo, sentir medo de expressar o que sente, viver em alerta constante. Quando amar parece mais com temer do que com confiar. Quando você tem a impressão de que tudo o que faz incomoda. Quando você passa a pedir permissão para existir.
O Estafeta: Por que é tão difícil sair de uma relação tóxica?
Rosangela Matos: Porque toda relação tóxica entrega também doses de afeto. E é nelas que a pessoa se agarra. Entre os machucados, existem promessas. E a ideia de mudar alguém é sedutora. Muitas vezes, a mulher cresceu num ambiente onde o afeto vinha misturado com dor, e aquilo que é abusivo parece familiar.
Existe também o medo: da solidão, do julgamento, do fracasso… E no fundo, a esperança de que, se ela aguentar só mais um pouco, tudo vai mudar. Como se houvesse um pote de ouro no fim da luta. Mas a verdade é que sair exige reconhecer que o amor, sozinho, não é suficiente. E para quem idealiza o amor romântico, isso é devastador.
Mais do que isso, há uma programação emocional. Muitas mulheres foram ensinadas, desde cedo, a aguentar, a não desistir, a ser “fortes” demais. E isso cria uma armadilha silenciosa: elas se culpam por não conseguir sair, quando na verdade foram treinadas para ficar.
O Estafeta: Quais os principais fatores que levam alguém a trair?
Rosangela Matos: A traição nem sempre nasce da falta de amor, mas da falta de limites internos. Ausência de maturidade emocional, baixa autoestima, desejo de validação, impulso não controlado, padrão repetitivo, fuga da realidade… Muitas vezes, a pessoa trai porque não sabe lidar com frustração. Porque confunde desejo com direito. Ou porque nunca aprendeu o que é responsabilidade afetiva.
Pesquisas indicam que os principais motivos envolvem insatisfação emocional, busca por novidade, carência, raiva, ressentimento e, em muitos casos, um histórico de infidelidade na própria família. A traição, quase sempre, é sintoma de algo mal resolvido, dentro da pessoa ou dentro da relação.
O Estafeta: O que considerar antes de perdoar uma traição?
Rosangela Matos: Mais do que perdoar, a questão é: dá para superar? Porque o perdão, isolado, não reconstrói confiança. E muitas vezes quem perdoa se vê obrigada(o) a suportar sozinha(o) o peso do recomeço.
Para que a superação seja possível, é necessário que quem traiu esteja genuinamente arrependido, disposto a reparar o dano, a mudar comportamentos, e a construir segurança novamente. E quem foi traído precisa estar emocionalmente disponível para esse processo.
Não se volta para o mesmo lugar. Ou o casal constrói algo novo, ou vive um repeteco da dor.
O Estafeta: Como evitar que conflitos destruam a confiança?
Rosangela Matos: Conflito não destrói relacionamento. O que destrói é o modo como ele é conduzido. Quando a briga vira competição, quando um tenta vencer o outro, quando a conversa vira julgamento, e a escuta vira ataque.
A confiança é o elo invisível que sustenta o vínculo. Ela quebra quando a dor é usada como arma, quando a vulnerabilidade do outro vira munição, quando o desentendimento vira humilhação. Casais fortes não são os que não brigam. São os que sabem como brigar.
O Estafeta: O que fortalece um relacionamento?
Rosangela Matos: Não são os grandes gestos. É o cuidado nos detalhes. É a forma como você pergunta como o outro está e realmente espera a resposta. É a maneira como se escuta, como se repara, como se sustenta a rotina sem perder o olhar do começo.
Fortalece a relação o comprometimento com o presente. A admiração. Os planos em comum. A capacidade de dividir decisões e de se interessar, de verdade, pelo que o outro vive e sente. O amor é construído. E o que sustenta ele é respeito, presença e lealdade emocional.
O Estafeta: É possível reconstruir uma relação depois de uma crise?
Rosangela Matos: Sim, mas não da mesma forma. Reconstrução não é colar o que quebrou. É criar algo novo com os mesmos nomes, mas com outra estrutura emocional. Exige verdade, disposição, humildade e uma decisão real de fazer diferente.
E eu já vi reconstruções lindas. De casais que entenderam a dor, olharam para ela de frente, e decidiram não só continuar, mas crescer com aquilo. O que não dá é para reconstruir fingindo que nada aconteceu. A negação prolonga o dano.
O Estafeta: Como lidar com o desgaste sexual?
Rosangela Matos: O sexo se desgasta quando a intimidade se desconecta. Quando o toque vira protocolo. Quando o casal já não conversa sobre o que sente, sobre o que deseja. Intimidade vai além do ato. É a soma do afeto, da escuta, do carinho, da conexão emocional.
Aquilo que não se resolve em pé, não se resolve deitado. Falar sobre isso com profundidade pode ser o começo da reconexão.
O Estafeta: Qual mensagem você deixaria para quem sente que perdeu a voz dentro de um relacionamento?
Rosangela Matos: O amor vale a pena. As relações valem a pena. Mas não qualquer uma. Amor não é para doer. Pode ter conflitos, pode ter fases difíceis. Mas não é um lugar onde você é maltratada, ignorada ou desvalorizada.
Se você sente que perdeu a própria voz, talvez seja a hora de reencontrar a si mesma. De voltar a se olhar com respeito, com compaixão, com verdade. Você merece viver um amor bom. Um amor que facilite sua jornada, que te fortaleça, que te acolha. E, se isso não está acontecendo, talvez seja o momento de cuidar do relacionamento mais importante da sua vida: o relacionamento com você mesma (o).