Dom Paulo Moretto e a sua última entrevista ao O Estafeta

Em março de 2018, Dom Nei Paulo Moretto recebeu a reportagem d’O Estafeta em sua residência.

Com seu semblante sempre calmo e sereno, o Bispo Emérito falou sobre sua trajetória e sua ligação com a religião.

Residindo num apartamento na área central da cidade e sob os cuidados de uma secretária, Dom Paulo viveu assim ao longo dos últimos anos.

Confira o que ele falou na última entrevista concedida ao O Estafeta:

DOM PAULO MORETTO: TUDO É GRAÇA

Do alto de um prédio de sete andares, próximo ao bairro São Peregrino, Dom Nei Paulo Moretto, 81 anos, observa a cidade de Caxias do Sul. É ali que tem vivido desde que deixou a titularidade da Diocese, que foi comandada por ele por quase 25 anos. “É como um matrimônio que dura para sempre, uma vez Bispo, sempre bispo”, reforça ele.
Por isso é que a rotina de Dom Paulo é marcada por muita oração e acolhimento.

Sentado próximo a uma mesa na sala de estar, o Bispo Emérito observa o movimento pelas ruas da cidade. Lê cartas, convites e recebe correspondências. Em todos os cantos da casa, muitas flores – sua paixão. Reforça que escolheu residir ali a convite de um padre, que lhe ofereceu o espaço. No andar superior, numa espécie de sótão, Dom Paulo tem uma Capela, onde celebra missas e faz orações. O pequeno altar o acompanha desde a sua ordenação episcopal. Logo na entrada, a imagem de Santa Teresinha. É dela que o Bispo retirou seu lema, “Tudo é Graça”. Ao lado esquerdo do altar, a imagem de Nossa Senhora, esculpida em madeira (também um presente).

Nesse segundo andar também, está montada uma biblioteca. É nela que Dom Paulo faz suas reflexões, leituras e guarda seus materiais. Cerca de 80% dos livros foram doados, para entidades como o Seminário. Dois deles, o Bispo presenteou à reportagem d’O Estafeta, inclusive autografados. Eles narram histórias da família de sua mãe, a família Soldatelli.

Com voz calma e serena, o Bispo recordou momentos de sua trajetória, falou da Igreja, de sua missão, dos estudos que fez em Roma, entre outros assuntos.

Com os olhos azuis sempre atentos, com voz tranquila, Dom Paulo continua zelando por seu povo e espalhando bênçãos. Hoje, a dificuldade maior está na locomoção. Diagnosticado em 2008 com uma vasculite crônica, uma deficiência na circulação sanguínea que atinge as extremidades do corpo e dificulta a cicatrização de machucados, Dom Paulo tem dificuldade para caminhar.

Gosta muito de contar histórias, de relembrar os muitos momentos que vivenciou com seu povo. Procura não lembrar do acidente que sofreu há 15 anos, pois diz que foi um momento muito difícil.

Por outro lado, recorda momentos pitorescos, inclusive numa de suas passagens por Veranópolis. “Uns garotos me entregaram flores. Eram flores que encontraram pelo caminho. Eles sabiam que eu gostava delas. Falei que não tinha nada naquele momento para retribuir e assim agradeci. Disse um ‘muito obrigado’. (risos). Eles ficaram muitos felizes e eu também. Nunca mais vi eles. Gostaria muito de encontra-los hoje. Naquela época eram bem pequenos”, recorda.

Se você é um desses meninos que entregou flores ao Bispo, saiba que ele gostaria de vê-lo. De suas passagens pela Terra da Longevidade, o Bispo recorda ainda da Romaria de Nossa Senhora de Lourdes. Da região, ele recorda do Padre Ângelo Mônaco, sacerdote que chegou a conhecer e que segundo ele, “espalhava bênçãos para todos que se aproximavam”.

Durante a semana, Dom Paulo vai à Catedral de Caxias do Sul, nas segundas e terças-feiras, para realizar confissões, ajudando os padres no acolhimento e nos serviços. Também celebra missas, casamentos e batizados nas Igrejas da região, como nas capelas de São Peregrino, Capuchinhos, além da Catedral. O Bispo também gosta de ir a uma Chacará, chamada por ele de “Pequeno Paraíso”, na localidade de Galópolis, onde procura descansar e estar com amigos.

Em maio, ele completará 82 anos e segue firme com a sua missão.

Confira a entrevista exclusiva concedida por Dom Paulo Moretto à reportagem do Jornal O Estafeta:

 

O Estafeta: O que o senhor tem feito? Como é o seu dia a dia?

Dom Paulo: Fui bispo durante muito tempo, mais de 28 anos. O meu trabalho era a direção e a orientação da Diocese. Agora, sou Bispo Emérito. Continuo sendo bispo, porque a gente é para sempre. É como um matrimônio. Mas nem sempre a gente tem a mesma força, a mesma coragem. Porque as nossas forças são limitadas. Até o Concílio do Vaticano II, o bispo era praticamente vitalício e era raro o bispo que renunciasse. Mas, depois disso, com 75 anos, a gente vira bispo emérito. É uma espécie de aposentadoria, porque para ninguém a aposentadoria é total. Sempre sobra aquilo que a gente adquiriu, aquilo que fizemos, que a gente amou… Permanece o amor pela Diocese.
Também, evidentemente, a gente conserva o vínculo, o laço com a Diocese que a gente amou e serviu. Mas não tem mais a responsabilidade da direção. Então, por isso, meu trabalho, agora, continua o mesmo. Todos os dias eu rezo pelo Diocese. Rezo a missa e rezo também a liturgia das horas, que é a oração prescrita para o bispo e padre pela Diocese inteira.

O Estafeta: O senhor tem ido até a Diocese?

Dom Paulo: Eu rezo por ela. Além do mais, faço um serviço todas as segundas e terças-feiras, em que eu vou à Catedral atender as confissões. É um trabalho muito importante para o padre e para o bispo também. E depois, é evidente que o bispo leva tantos anos e ele conhece bastante sobre o coração humano e a própria Diocese. Sempre tem gente que me procura ou para se confessar, para pedir conselhos e orientações, ou para dizer aquilo que está passando na sua vida cristã. Confessando, mostramos que somos pecadores. Também a nossa fraqueza nos ajuda a nos aproximar de Deus. De saber que Deus nos quer bem e que ele sabe usar tudo que acontece em nossa vida para que nós expressemos nosso amor para com Ele e saibamos confiar Nele. Devemos ter muita confiança e esperança.

O Estafeta: O senhor sempre esteve muito presente nas comunidades durante o bispado. Como foi essa aproximação?

Dom Paulo: Foi muito abençoada. Fui nomeado bispo muito moço. Eu fiquei bispo lá em Cruz Alta, e depois eu vim para Caxias. Eu conheço muito o povo cristão, suas alegrias, suas lutas, suas dificuldades. Isso fez com que eu me aproximasse bastante do povo cristão. Aliás, quando eu fiz uma visita para o Paulo II, ele disse que era muito raro alguém ser bispo na cidade onde nasceu durante muito tempo, e que eu tive essa graça porque eu aqui nasci e me criei e, por um tempo, estudei em Roma, no Colégio Pio Brasileiro, e ali conheci muitos padres que depois se tornaram bispos no Brasil inteiro.

O Estafeta: Em toda essa trajetória, o senhor escolheu ‘tudo é graça’ para ser seu lema…

Dom Paulo: Sim. O meu lema episcopal. O lema episcopal tem muita importância na vida de uma pessoa. “Tudo é graça” é a palavra de Santa Terezinha, do Menino Jesus, e depois também, eu busquei essa palavra em um autor que eu amei muito, Bernanos. Porque é evidente que o bispo toca muita coisa bonita, mas toca muita ferida também. Muita ferida no coração das pessoas, dos padres, mas ele deve saber que ajudar as pessoas em tudo aquilo que acontece, ver o gesto de Deus nosso Senhor e corresponder ao amor dele. Saber como corresponder. Graça significa que tudo é um gesto de Deus. Muita gente considera como um dom de Deus, um presente. Uma graça, por exemplo, é a saúde, ter estudado em Roma. Mas, mais do que uma coisa, a graça é um gesto de Deus. É uma coisa que Deus concede com seu amor.

O Estafeta: Como o senhor vê a forma como o Bispo Dom Alessandro Ruffinoni tem conduzido a Igreja, agora que o senhor está um pouco mais afastado?

Dom Paulo: Primeiro de tudo, é evidente que eu procurei ser o bispo conforme o meu temperamento e a graça que Deus me concedeu. O Dom Alessandro é um bispo diferente de mim. Mas ele é muito dinâmico. Um bispo é diferente do outro, depende do temperamento de cada um, da formação e da graça que cada um teve. Eu sou contente que ele é meu sucessor, e ele já veio missionário. A nossa Diocese, de Caxias, é uma Diocese missionária.

O Estafeta: O senhor tem alguma lembrança ou passagem de Veranópolis, Fagundes, Cotiporã?

Tem uma coisa que eu faria um esforço grande para alcançar de novo. Eu visitei Veranópolis e uma gurizada me trouxe um maço de flores. Sempre gostei muito de flores, mas eles trouxeram o que eles encontraram na rua. Eu fiquei comovido, fiquei contente. E disse para aquela gurizada: “Eu não tenho nada para dizer, nada para dar pra vocês, nada para vocês, não sei nem o que dizer”. É um gurizinho, e isso eu pagaria para ver ele de novo, nunca mais vi, ele me disse “se tu não sabe o que dizer, diz muito obrigado” (risos).

O Estafeta: O senhor participou da celebração dos 50 anos da morte do Padre Ângelo Mônaco, em 1998…

Dom Paulo: Sim. Eu conheci o Padre Mônaco. Ele era muito estimado e invocava a bênção de Deus sobre o povo. Ele era italiano. Ele era padre do Sul da Itália e o temperamento era diferente do Norte da Itália. Ele era muito comunicativo. Ele dava a bênção, pedia uma oração a Deus. A bênção é um pedido para que Deus vá ao encontro das pessoas naquilo que elas precisam naquele momento. Se precisava a chuva, era pedir a Deus que mandasse a chuva. Deus sabe melhor o que a pessoa precisa. Não é pedir que dê isso ou aquilo, mas Ele que sabe tudo, conhece tudo e pode tudo, que Ele vá ao encontro à pessoa naquela situação concreta que ela está vivendo.

O Estafeta: O senhor passa os dias nessa casa. Lê, reza, vai até a Catedral…

Dom Paulo: Sim, estou nessa casa de um padre que colocou ela a serviço da Diocese, porque o bispo precisava de um lugar para ficar. Essa casa é muito boa, aconchegante e eu moro aqui. Tem a sala e em cima tem a capela.
E tem a Chácara, o pequeno paraíso… Perto de Galópolis, é muito bonito… Tem muitas árvores, muitas flores e muitas frutas. É dos padres, mas quando eu quero, eu posso ir. Eu tenho o problema da condução, mas eu tenho um grande amigo que me leva muitas vezes até lá.

O Estafeta: O santuário de Caravaggio também foi um local em que o senhor esteve muito presente. É uma marca da Diocese, não é?

Dom Paulo: Nossa Senhora de Caravaggio é a Padroeira da Diocese. O bispo atual, meu sucessor, conheceu muito bem o Santuário de Caravaggio, na Itália.

O Estafeta: Hoje, na Igreja Cristã, outros credos, outras religiões surgiram. O que o senhor pensa sobre isso?

Dom Paulo: Eu acho que no coração humano existe muita sede de Deus e muita vontade de conhecer Deus. Por isso, eu acho que há muitas religiões. Elas são fruto dessa sede de Deus. Mas, também, outra coisa é que às vezes, a busca não é boa. Se busca Deus para encontrar a solução de todos os problemas possíveis, por isso também, nem toda procura é negativa.

O Estafeta: Agora, com a Páscoa, a gente acaba refletindo, pensando… O que ela realmente representa para a Igreja Católica e para o Senhor?

Dom Paulo: A Páscoa representa duas coisas. Primeiro, nós olhamos para Deus e confiamos nele e Ele nos quer bem. Ele permite que nós tenhamos o sofrimento também, assim como Jesus morreu na cruz. Mas, a última palavra é a vida, a ressureição, é a páscoa, é a vitória do bem sobre o mal. Então, o cristianismo não ignora o sofrimento, mas ele sabe que a última palavra não é essa, não é a da morte, mas a da vida. E por isso, a Páscoa é a vitória do bem sobre a morte e sobre o pecado.

Reportagem de Leandro Galante e Joana Binda

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