Humanidade em crise: Como a cultura da violência afeta nossas vidas

Existe um motivo para os seres humanos terem inventado tribunais há pelo menos 3.800 anos: para que uma sociedade se sustente, é preciso que haja leis, e que elas sejam cumpridas por organismos independentes. No momento em que qualquer pessoa se sente no direito de fazer justiça com as próprias mãos, a civilização recua vários passos. 

Em novembro, a região presenciou umas das cenas de maior barbárie nunca antes vistas por aqui: o espancamento que resultou na morte de Arlindo Elias Pagnoncelli, conhecido como “Zinho”, de 39 anos.

Ele faleceu na tarde de terça-feira (17), em um hospital de Vacaria, cerca de 10 dias após ser espancado na praça central de Nova Prata. Cerca de 40 pessoas avançaram em Pagnoncelli, no início da noite do dia 8 de novembro. Zinho chegou a ser encaminhado para o hospital da cidade, mas acabou sendo transferido para uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do hospital vacariense por conta do estado de saúde agravado. Na noite das agressões, um domingo de tempo firme, muitas pessoas estavam reunidas no local.

Muitos são os temas a serem abordados com base nesse fato lamentável, mas o principal, que nos faz refletir, é sobre a desenfreada ideia de fazer ‘justiça com as próprias mãos’. Muito disso, motivado pelas redes sociais.
Por trás de um acontecimento como este, inumeráveis questões. O que levou essas pessoas a praticarem um ato de violência dessa proporção? Que feridas psíquicas, emocionais e/ou sociais motivam o comportamento dessas pessoas? Como o ambiente segue sua rotina após um sofrimento dessa dimensão? Quem cuida de quem fica? Por que não somos mais capazes de ouvir, sem atacar?

Não é fácil chegar a respostas. Assim começamos a refletir. Não é fácil estar nesse estado de transformações e acomodações psicossociais. Não somos mais quem éramos e não sabemos o que seremos.

CONVERSAR E NÃO AGREDIR

A psicóloga e coordenador do curso de Psicologia da Universidade de Caxias do Sul (UCS), Ane Sganzerla Breitembach, destaca que o tema ‘fazer justiça com as próprias mãos’, é amplo e polêmico e, segundo ela, cabe questionar o que se entende por justiça. “Em crimes relacionados contra o patrimônio, por exemplo, costuma-se afirmar que a ‘justiça foi feita’ se o acusado foi punido com a prisão. Logo, se a justiça ‘não foi feita’, não houve prisão. Em alguns casos, a prisão é sinônimo de justiça, em outros, o senso comum adota outras medidas, como a violência por si só, linchamento. Tudo vai depender de quem cometeu o ato e qual o ato em si. Um outro exemplo, seria uma empresa que demite sem pagar devidamente. A ‘justiça foi feita’ se os bens do proprietário forem confiscados ou leiloados”, reflete. 
 

Psicóloga Ane Sganzerla Breitembach

A psicóloga ainda faz um questionamento sobre o que “significa fazer justiça com as próprias mãos?”. Ela pontua que a resposta pode vir do processo evolutivo do ser humano. “Todos nascemos pessoas agressivas no sentido de defender nosso território e sobrevivência. Com o tempo aprendemos que podemos conversar e não agredir. Mas, existem pessoas que essa condição não fica clara e aprendida e que além de não evoluir para atacar os problemas, essa agressividade transforma-se em violência. Essa violência é não aceitar algo diferente do que eu penso e que todo o ato precisa ter uma consequência. Quando esses três elementos se juntam, pode culminar em situações como vimos recentemente”, complementa. 

Ane ressalta que existem outros critérios que agregam a isso, como as nossas relações sociais que andam muito ruins em termos de qualidade. “Na maioria das vezes, nem sequer conhecemos nossos vizinhos, não fazemos nada juntos e ainda acabamos vendo no outro potencial para um inimigo. Neste caso, como não se tem mais a capacidade de confiar e estabelecer boas relações aliadas a ideia de falta de segurança, injustiça social acabamos atuando no outro”, ressalta e finaliza: “o que precisamos refletir é que se eu apoio ou atuo em um ato violento não estarei fazendo justiça. Estamos nos igualando a quem cometeu algo dito ‘errado’, incorrendo no mesmo equívoco”.

O CRIME

O tumulto aconteceu na praça da Avenida Fernando Luzatto, no centro da cidade, quase em frente à prefeitura, local conhecido como um ponto de encontro noturno e, consequentemente, palco de badernas, segundo a BM. O linchamento foi filmado por diversas testemunhas. As imagens mostram a vítima sendo agredida com socos e chutes.  

Pagnoncelli era solteiro e trabalhava como lixador de mármore em uma mineradora havia 20 anos. 

A Polícia Civil concluiu a investigação responsabilizando 17 pessoas. O inquérito foi remetido à Justiça indiciando 10 adultos pelos crimes de homicídio, lesão corporal seguida de morte, omissão durante o linchamento, corrupção de menores e falso testemunho. Desses, cinco tiveram a prisão preventiva decretada – quatro já foram presos e um homem permanece foragido. Ainda, entre os agressores há pelo menos sete adolescentes, cuja investigação já foi remetida à justiça.

Segundo a delegada, pelo menos 40 pessoas participaram do linchamento, entre os 17 que foram responsabilizados e outros mais de 20 que assistiram ao fato e não interviram. Todos foram identificados, com exceção de uma pessoa, mas não serão responsabilizados pela omissão. “A mulher presa conclamou a população.
E as pessoas saíram batendo. Ela instigou fortemente. No final da investigação, restou claro que ela não foi tocada nem assediada. A menina diz que foi tocada (por Pagnoncelli) e a família dela também diz. Provavelmente, ela (mulher presa) tenha tomado as dores da menina, fez a família se inflamar de ódio. A família, inicialmente, não faria nada se ela (presa) não estivesse ali”, ponderou a delegada.

Do suposto ato de Pagnoncelli em relação à adolescente até o início das agressões se passaram 1h40min. Para a delegada, isso significa que a ação do linchamento foi pensada pela mulher presa.

Sobre a participação de um policial militar no espancamento, a delegada diz que, de 17 pessoas apontadas como responsáveis, foi pedida a prisão das cinco que atuaram mais decisivamente para a morte de Pagnoncelli, que não foi o caso do PM. Ele agrediu a vítima no primeiro momento, mas não foi autor dos golpes desferidos quando a vítima estava em frente à prefeitura e que culminaram na morte, segundo a delegada. 

O inquérito já está sob análise do Ministério Público de Nova Prata.

DE VOLTA À ERA MEDIEVAL

Para a delegada da Polícia Civil de Nova Prata, Liliane Pasternak Kramm, as pessoas precisam acreditar na Justiça e nas Instituições. “Por mais que a gente não alimente tanta esperança, é o meio mais seguro e para todos. A justiça, por mais que ela possa parecer demorada, ela gera segurança e igualdade”, enfatiza.

A demora em investigações muitas vezes decorre da falta de efetivo nas Delegacias de Polícia e nos Fóruns de todo o Estado. Liliane ressalta que a situação se repete em Nova Prata. Ela foi cobrada em manifestações pelas ruas da cidade, pedindo celeridade no processo. “Diziam que devíamos prender. Cobravam por justiça, mas eu não posso sair prendendo. Tinha que ouvir todos os envolvidos. Seguir todos os ritos do processo. Assim o fizemos, indiciando 17 pessoas pelo crime. A justiça precisa seguir seu rito”, enfatiza. 

 

Delegada da Polícia Civil de Nova Prata, Liliane Pasternak Kramm

Para a delegada, o que foi constatado em Nova Prata, foi uma barbárie, um ato desastroso, uma crueldade. “Parece que voltamos a idade medieval, quando queimavam as bruxas em praça pública ou amarravam as pessoas em postes. Isso não pode se repetir. É por meio da justiça que se deve buscar a solução de casos e a igualdade perante às Leis”, frisa.

A delegada explicou que a investigação seguiu os protocolos, afim de apurar com rigidez o caso. Porém, a falta de efetivo pode acarretar na demora. 

Todos os órgãos de segurança do Estado do Rio Grande do Sul vivem um sucateamento. Faltam policiais nas ruas, desestruturação de espaços físicos, falta de repasse de recursos, entre outros. “Mesmo assim, o descrédito com as Instituições não pode ocorrer. É por meio da justiça que se chega à igualdade. O trabalho foi positivo e comprometido de todos os servidores. Se formos acelerar os tramites, poderíamos ter dado chances ao erro”, enfatiza.
 

UM ERRO NÃO JUSTIFICA O OUTRO

Houve um tempo em que o controle social era todo baseado na vingança privada, na regra do mais forte ante a ausência de um Estado fortalecido, a partir da autotutela (autodefesa) ou da autocomposição entre as partes (desistência, submissão ou transação), cuja essência se prestigia mesmo na atualidade.
 

Sarah Busachi Weigher, advogada

Não obstante, a parcialidade das decisões foi cedendo espaço para a figura dos árbitros, dos pretores e, por fim, do Estado-juiz, momento em que a justiça que até então era eminentemente privada passa para a gleba da justiça pública. A discussão posta em juízo já não mais se resolve somente entre as partes, pois há a triangularização da relação jurídica, ou seja, há o Estado-juiz entre as partes, mas acima delas.

Para a advogada Sarah Busachi Weigher, fazer justiça com as próprias mãos traz o viés de vingança. “Não cabe ao indivíduo fazer justiça. No passado tínhamos aquela máxima do olho por olho, dente por dente. Era em forma de vingança. Se lutava pela honra. Hoje, isso não existe mais. É a Constituição que deve prevalecer”, enfatiza.

A Constituição dá ao Estado o poder de agir para proteger o cidadão. Sarah reitera que fazer justiça com as próprias mãos é uma prática de violência. “O cidadão de senso comum não tem condições de avaliar. Ele pode estar acometido pela raiva e comoção geral. Não tem condições nem preparo para avaliar como um juiz. Esse cidadão passa a agir com base em suas experiências, sem um critério de imparcialidade ou ponderação técnica necessários” destaca a advogada.

Por isso, Sarah reitera a importância da Justiça e das Instituições, agindo de forma ética e seguindo a Constituição.
Hoje, segundo a advogada, lichamentos são os atos mais comuns nas práticas de justiça com as próprias mãos, também chamado exercício arbitrário das próprias razões. A maioria dos casos acontece envolvendo ou sendo coagido por mais de uma pessoa.

A (falsa) ideia de justiça com as próprias mãos reflete os instintos mais selvagens e primatas do homem que se pretende moderno. É o momento em que há total abdicação ao “pacto” social, em que o justiceiro faz a sua própria lei, acusador e juiz a um só tempo, algoz que vinga os males cometidos pelos transgressores da lei.
À medida que o Estado se ausenta da tutela dos direitos dos cidadãos, agrava-se a incidência de condutas criminosas praticadas por cidadãos como forma de fazer (pseudo) justiça. 
Afinal, um erro, certamente, não justifica o outro.

ALHEIOS AO ESTADO TRIBUNAIS DO CRIME CRIAM JUSTIÇA PARALELA

Se a descrença na institucionalidade estimula o desejo de se fazer justiça com as próprias mãos, as relações sociais constituídas de forma alheia ao Estado, como é o caso do crime organizado, também constroem, à sua própria maneira, mecanismos de aplicação da justiça e de se fazer cumprir as regras estabelecidas, ainda que sejam informais. Um exemplo marcante é a existência de “tribunais do crime”, que costumam ocorrer entre integrantes de grupos criminosos que funcionam totalmente à margem da sociedade – e, por consequência, da institucionalidade jurídica. 

Não há estatísticas oficiais sobre esse tipo de crime, mas um levantamento feito pelo portal de notícias G1 mostrou que, em 2017, somente no estado de São Paulo, houve pelo menos 42 mortes cometidas por criminosos em uma espécie de julgamento paralelo. Os mecanismos costumam imitar a estrutura jurídica: se há a suspeita algum desvio da conduta esperada pelos criminosos, faz-se um julgamento do caso. Ao acusado é dado o direito de defesa, eventuais vítimas ou testemunhas se manifestam. Só que o rito é sumário: a sentença é dada imediatamente – e cumprida na sequência. 

“Eu não sabia que isso existia, achava que era uma lenda, mas de fato existe”, diz Camila Umpierre, que há dois anos atua como defensora pública no estado de Minas Gerais. De acordo com a defensora, cada facção criminosa têm uma espécie de código de postura, que inclui, por exemplo, a proibição de se aproximar da mulher de outro integrante de facção, ou de cometer estupros. “O estupro costuma ser punido mesmo que não se conheça a vítima”, conta a defensora. “Isso às vezes não é bem evidente no processo, pois os acusados quase sempre negam as acusações, mas fica subliminar”, diz Camila. Segundo ela, é comum em algum momento do processo alguém dizer que tal pessoa morreu porque estava “caminhando errado”. “Mais do que uma punição, às vezes a morte é um aviso aos demais”, diz.

ELE ERA MUITO CARINHOSO É INSUPORTAVEL VIVER SEM A PRESENÇA DELE

A irmã de Arlindo Elias Pagnocelli, o Zinho, Vânia Pagnocelli, conversou com exclusividade com o Jornal O Estafeta. Emocionada, ela relata que os dias tem sido difíceis sem a presença do irmão. Vania revela que Zinho era uma pessoa muito tranquila, sem inimigos e bastante caseiro. Hoje, ela sente a falta de ser acordada por ele, que sempre lhe dava um feliz bom dia e a convidava para trabalhar.

“Ele trabalhava há 20 anos no mesmo lugar, e sempre trabalhou lá. A gente morava próximo; ele, na casa que era da nossa mãe, e eu logo atrás. Todos os dias me chamava ‘bom dia maninha, vamos trabalhar?’. Nós perdemos os nossos pais muito cedo, sei que ele tinha os seus conflitos por causa disso. Então eu me tornei como uma mãe, e ele era para mim como um filho. Me chamava de maninha querida. Eu sei que ainda é cedo para dizer, mas é insuportável viver sem a presença dele”, conta, segurando as lágrimas.

Para Vânia, Zinho não fazia distinção de pessoas, estava sempre alegre, e que, se algum dia ele fez mal a alguém, foi a si próprio. Quase todas as noites os irmãos tomavam chimarrão juntos e, quando ele não ia, sempre dava um “grito” de sua casa, para avisá-la que estava tudo bem.

No dia em que o crime ocorreu, Vânia revelou que ela mesma havia deixado o irmão no centro. “Ele nunca saía. Naquele dia, por ser véspera de eleição, e meu filho e mais um conhecido dele serem candidatos ele decidiu ir. Chegou aqui em casa dizendo ‘os meus amigos me convidaram para ir no centro, segurar bandeira’, e eu mesma fui deixá-lo lá. Falar o que aconteceu naquele dia é uma coisa que, por mais que a gente tente, a gente não vai entender”, diz.

Com a voz embargada, Vânia relembra quando recebeu a notícia da violência que Zinho sofreu. Ela ressaltou que foram até a sua casa chamá-la, informando que houve uma briga e que Zinho estava caído em frente a prefeitura. 
“Eu cheguei lá muito rápido. Quando vi o meu irmão ali, gritando de dor, eu fiquei em choque. Ele estava ali há 40 minutos, e o Samu ainda não havia aparecido. Ele gritava, mas não dava para entender o que ele falava. Eu fiquei desesperada. Vi que o estado dele estava bem grave, mas até então eu não sabia nada do acontecido direito”, conta.

O único desejo de Vânia Pagnocelli é que seja feita justiça, afinal, em suas palavras ela descreveu Zinho como uma criança em corpo de adulto.

“Não teve nenhum momento em que ele tenha passado a mão em alguém. Não tem como entender como uma pessoa pode desferir contra a outra chutes, pontapés, e socos, sem conhecer. Não tem como explicar o meu irmão não tinha feito nada para ninguém, para baterem daquele jeito. Não sei o que leva as pessoas a fazerem tudo aquilo! Resumindo tudo isso, eu só tenho uma coisa para dizer, eu quero justiça, eu quero muito justiça. O meu irmão não tinha maldade”, finaliza Vânia.

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