Pedaço de mim: A dor dos pais que perderam seus filhos em acidentes

Fotografias, roupas, lembranças e quartos intactos. Foi apenas o que restou para muitas famílias que sentem na pele o que é perder um dos seus para acidentes no trânsito. Quando pensamos na lei natural das coisas, fica difícil sequer mensurar a dor que uma mãe e um pai sentem ao receber a notícia de que seu filho já não está entre nós. Para a família, os dias jamais serão os mesmos. 

“Não existe dor maior do que a de um pai e uma mãe ter que carregar o caixão do filho”

Bruno Marchesini tinha 26 anos. Era tido pela sua família como um jovem  companheiro, carinhoso e de muitos amigos. Muito apegado aos seus pais, irmã e sobrinha. Adorava cozinhar e ajudar nas tarefas de casa. No dia 28 de março de 2020, num sábado,no começo da pandemia, após ter passado o dia inteiro com a família e passear com a sobrinha, ele saiu para nunca mais retornar. “São muitas lembranças. Meu filho tinha o sonho de abrir o próprio negócio de comida. Ele amava cozinhar para a família e amigos. Quando chegava à noite, ele falava ‘pai, mãe, agora vocês sentem, que eu vou fazer a janta’. Recentemente, ele havia comprado o próprio apartamento. Somos, éramos uma família muito unida”, conta a mãe Lucia. 

A irmã Raquel Marchesini conta a relação com ele: “estávamos sempre muito conectados. Ele era aquela pessoa muito zen. Eu sempre digo, ele não era somente meu irmão. Ele era meu melhor amigo”.

Na semana que antecedeu o acidente, Bruno passou muito tempo com sua família. Por ser início de pandemia todos procuraram estar mais próximos. De acordo com Raquel, ele ainda afirmou que não iria sair no fim de semana. Naquele sábado, ele havia retornado de uma pescaria e dormiu, pois na quarta-feira havia previsão de retornar ao trabalho. 

“Eu nunca vou esquecer aquele dia. Quando olhei para aquele homem no hospital – ele estava muito bêbado, mal se segurava em pé e caminhava arrastando o chinelo –  e perguntei se ele estava contente de ter tirado a vida do meu filho. Naquele dia eu entreguei nas mãos de Deus, porque o Bruno não voltaria, o que voltam são só os sonhos”, relata a mãe.

No momento do acidente, Bruno seguia de Vila Flores para Nova Prata, quando ao entrar na BR 470, o Pálio que conduzia foi atingido por um Jetta, que estava em alta velocidade. Segundo o exame de etilômetro realizado no dia, foi constatada embriaguez ao volante por parte do motorista do Jetta, com 0,50mg/l de álcool por litro de ar expelido pelos pulmões, o que configura crime de trânsito (qualquer índice acima de 0,33 mg/l).

Dona Lucia conta que chegar no local do acidente, não chorou, pois ela acreditava que o filho estaria vivo. A família frisa que mesmo com o passar dos dias, ainda não assimilou o luto. A impressão é de que Bruno chegará a qualquer momento. “A voz que ligou para nós aquele dia não sai da nossa cabeça”, revela Raquel.

“A dor vai passar? Não. Vai ser igual? Não. É mentira. Nenhum dia a gente esquece dele. A dor de uma mãe, que o carregou por nove meses, é imensa. Quando eu recebi a notícia e fui até o carro, nem me passou pela cabeça que ele morreu. Primeiro, ao saber que ele foi retirado com vida do local, me confortou. Quando eu cheguei no hospital, a Raquel me disse ‘mãe, o Bruno morreu’. Na hora eu levei um choque. Fui eu quem fechou os olhos dele. E eu disse ‘vai com Deus meu filho, te entrego nas tuas mãos, Deus. A minha mãe dizia que uma mão tem cinco dedos, se tirar um, faz falta, é assim com os nossos filhos. Eu tento ser forte, mas sei o que sinto aqui dentro”, relata emocionada. 

O pai Mercilo também sente a falta do filho, da companhia, de sua preocupação em saber se ele já havia se alimentado, ou em saber se ele precisava de alguma ajuda na lida em casa. “Ele primeiro nos servia e deixava para comer por último. Encontrei com alguns dos amigos dele esses dias, e eles sempre comentam a falta que meu filho faz, da sua animação”, diz.

Devido ao distanciamento social imposto pela pandemia, o processo que corre em torno do acidente que envolveu Bruno ainda não foi concluído. 

“Para nós é torturante passar pelo local. Eu moro em Nova Prata e meus pais evitam ao máximo passar por ali, porque não tem como não lembrar. O meu irmão foi ceifado das nossas vidas. Podia ter sido eu e minha filha indo para casa, ou outras pessoas inocentes. Eu acredito que uma pessoa que mata no trânsito, a não ser um criminoso, não dorme mais, vai ficar marcado. Esse homem não terminou só com a vida do bruno, mas terminou com a família dele também”, descreve Raquel. 

Dona Lucia não deseja que nenhuma família passe pela situação que a sua passou e tem passado. “Não existe dor maior do que a de um pai e uma mãe ter que carregar o caixão do filho. Ele sempre me avisava tudo por telefone, e agora meu telefone não toca mais. Eu sempre quis ter mais um filho depois que a Raquel nasceu, nunca vou esquecer disso, pois eu sempre dizia que quando eles ficassem mais velhos, eles iriam se ajudar… E agora?”, conclui.

“Foi um pedaço nosso que foi junto. A nossa vida mudou totalmente, a família não é mais a mesma”

Há cinco anos, a família de Antônio Girotto Junior chora a sua ausência. Ele era o filho mais novo do casal Marines Binda Girotto e Antônio Girotto. Aos 17 anos, o jovem natural de Fagundes Varela, estudava no Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), campus Veranópolis, onde fazia um curso técnico em informática. Naquela noite, ele e um amigo estavam em um Siena. Os dois voltavam todos os dias da aula de transporte escolar, naquele 20 de junho de 2016, por exceção, optaram por ir de carro.

“Ele era um menino muito carinhoso, para mim ele era um amigo, parceiro, companheiro, muito mais que um filho. Quando eu estava em casa, ele sempre estava comigo”, conta o pai. A mãe o descreve como um jovem que sempre sabia o que dizer. Que em todos os momentos tinha abraços para distribuir. “Ele era diferente”, completa dona Marines. 

O quarto de Antônio permanece da forma com que ele deixou. Pela casa, muitas fotos do filho. Por diversas vezes as lágrimas vieram aos olhos dos pais. Apesar do tempo percorrido, o luto ainda parece ser algo recente naquela casa. 

“Ela convivia mais com ele dentro de casa. Ela sofre muito mais por ser mãe e, também, porque não tinha o mesmo preparo que eu. Passei por cursos, vivo no meio disso, e foi o que me ajudou a suportar. Agora para ela, ainda é muito doloroso”, conta seu Antônio.

Ele é motorista do sistema de saúde e já viu muitas pessoas feridas e já presenciou algumas mortes. Mas, quando aconteceu com o seu filho, foi uma experiência completamente diferente. 

“A gente não queria que fosse verdade. Até hoje, para mim, não é verdade. Fiquei esperando até o último momento que não fosse verdade. Com o passar do tempo, e com a saudade, você sente mais dor do que no momento. Foi um pedaço nosso que foi junto. A nossa vida mudou totalmente, a família não é mais a mesma. Ao chegar em casa, era aquela alegria, de ter todos juntos, mas agora, sempre falta uma coisa. A dor só aumenta. Quando alguém diz que sabe o que a gente sente, eu digo que não. Somente quem passa por isso é que tem a dimensão desta dor”, desabafa dona Marines. 

Por ser motorista, Antônio afirma que pode deixar um recado claro para quem quiser ler: “São 25 anos, nunca me envolvi em acidente, nem levei multa. A prudência é essencial. O meu conselho a todos esses jovens é: ‘Vão devagar’. Saiam antes se for possível. Não bebam se forem dirigir. Nenhuma família merece enfrentar o mesmo problema que a nossa passa até hoje”.

“Foi o pior dia da minha vida. Naquela hora o meu mundo acabou”

Dona Carmen Rigo se emociona ao falar sobre o filho Daian Rigo Menin. Ele tinha 23 anos, quando teve sua vida interrompida após colidir com uma árvore, no dia 17 de outubro de 2020. Na manhã daquele sábado, por volta das 1h30min, ele havia chegado do trabalho – pois seu turno encerrava na madrugada – e em seu plano ele iria deitar e dormir. Mas, uma ligação o fez mudar de ideia.

“Eu gostava de sempre abrir a porta para ele. Naquele dia, o Daian chegou e me disse que estava cansado, que não iria sair. Quando ele entrou no banho, uma pessoa ligou e eu o ouvi dizer que chegaria em 20 minutos. Eu contestei, já que ele havia me dito que estava cansado. Assim, me disse: ‘mãe, nem precisa chavear a porta, pois logo eu estou de volta’. Fiquei com aquela sensação estranha. Levantei de madrugada e ele não havia voltado e acabei pegando no sono novamente. Foi quando pela manhã, minha cunhada veio me avisar do que havia acontecido. Foi o pior dia da minha vida. Naquela hora o meu mundo acabou”, relata emocionada.

Carmen conta que foi até o local do acidente, mas um dos policiais que estavam no local a aconselhou a não olhar, para que não guardasse para si a cena, e que apenas tivesse em sua memória boas lembranças do filho. Daian é descrito pela mãe como um jovem amoroso e parceiro.

“Sempre que saia, falava ‘mãe, eu te amo’. Ele era tudo. Com a irmã, era muito grudado. Ela é especial, mas ele a levava ao quarto para jogar videogame, dava o controle e fingia que ela fazia gol. A gente tinha as nossas discussões, mas era um menino bem tranquilo. Tem dias que são insuportáveis. A Nicole todos os dias fala nele. Qualquer bichinho, ela dá o nome dele. Ela ganhou um ursinho, que é um anjinho, e além de ter colocado o nome, ela dorme todas as noites agarrada com ele”, conta. 

Dona Carmen conta que ainda espera o filho retornar do trabalho e que não consegue dormir antes do horário. Sua rotina ainda é a mesma, porém, ao invés de receber Daian, ela vai até a porta e chora a ausência do jovem. “Eu sinto a falta dele, e também sinto a dor da irmãzinha, porque ela também sente. Já perdi um sobrinho para o trânsito, e sempre que eu via algo na televisão, ficava imaginando a dor daquela mãe. Quando aconteceu comigo, achei que eu não ia suportar. Ver o meu filho num caixão foi horrível. É o pior sentimento de dor que uma mãe tem. Tu enterra pai, enterra mãe, mas não espera enterrar um filho”, se emociona.

Carmen ainda faz um apelo a todos os jovens, para evitarem cometer imprudências no trânsito e que assim outras mães não passem pela mesma situação que ela está enfrentando hoje.
​​​​​​​
“Se forem dirigir, não bebam. Se estiverem cansados, como o meu filho aquela noite, não saiam, não dirijam. Todos os amigos do Daian me disseram o mesmo sobre aquela noite, ele não tinha bebido nada. Tomou apenas uma garrafinha de água. O cansaço fez com que ele pegasse no sono e aconteceu essa tragédia. Tenham consciência de que a dor de uma mãe na hora de ver seu filho no caixão é a pior que existe. Se cuidem, é só o que eu peço”, conclui.

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado.

error: Conteúdo bloqueado.