Século XXI: Mulheres ainda convivem com a desigualdade de gênero

O Sociólogo, Doutor em Ciência Política e Professor Universitário da Universidade de Caxias do Sul (UCS), João Ignácio Pires Lucas, próximo à comemoração do Dia Internacional da Mulher, responde questionamentos acerca dos direitos das mulheres no Brasil de hoje.  Ao longo do tempo, o gênero feminino lutou por seus direitos. Porém, tendo em vista a desigualdade de gênero que ainda existe no Brasil, é necessário buscar avanços e descontruir ideais machistas que permeiam a sociedade. O movimento feminista ganha força no país, mas ainda é incompreendido e visto como algo negativo. Assim, torna-se cada vez mais importante informar-se corretamente sobre ele.
O Estafeta: O Brasil apresenta uma desigualdade ampla de gênero. O senhor acredita que ainda é possível melhorar nesse sentido?
João Ignácio Pires Lucas: No âmbito da desigualdade de gênero, entre homens e mulheres, podemos partir das informações que existem no Brasil. O IBGE publicou, em 2018, alusivamente à comemoração do Dia Internacional da Mulher, um levantamento de estatísticas de gênero em cerca de cinco âmbitos: nas questões democráticas, políticas, na área de saúde, educacionais e do trabalho; e em todos esses aspectos percebe-se uma profunda desigualdade. 
No plano internacional, a ONU, junto ao relatório de desenvolvimento humano, publica quase que anualmente relatórios temáticos sobre diversos assuntos, tais como o trabalho e a evolução tecnológica. Junto àquelas próprias informações do índice, ampliaram um conjunto de estatísticas dos diversos países e alguns, por exemplo, praticamente não apresentam mais nenhum índice de desigualdade de gênero ou é bastante baixo. Esses índices oscilam normalmente entre zero e um, sendo que zero é sem desigualdade e um representa uma desigualdade mínima.  Seja o ajuste do índice de desenvolvimento humano, seja a desigualdade de gênero, ou o próprio índice de desigualdade de gênero, que leva em consideração aspectos do mercado de trabalho e saúde, existem países que praticamente não têm mais desigualdade e outros que têm, ainda, uma desigualdade em torno de 0,6/0,7, que são desigualdades extremas. O Brasil, por exemplo, tem uma desigualdade horrível, pior do que a média mundial que é 0,4/0,5 enquanto os EUA têm uma desigualdade de 0,2, assim como a China também. Além desses, têm países do Norte da Europa, como a Eslovênia, que têm uma desigualdade em torno de zero. 
Isso sinaliza que a desigualdade de gênero não é universal. Em vários países, ela já é praticamente inexistente. E nesses países, obviamente, não foram apenas questões culturais, mas também leis e políticas públicas que garantiram a diminuição. Pensando desse modo, existe desigualdade de gênero no Brasil sim, e ela também é bastante agravada se acrescentarmos outros elementos, como os étnico-raciais.  As mulheres negras ganham muito menos do que os homens brancos e também ganham menos do que as mulheres brancas. Praticamente, se não estou enganado, as mulheres negras recebem cerca de um terço do que recebem os homens brancos, em média salarial. 
A questão de gênero e desigualdade de gênero existe, mas também é agravada por condições étnico-raciais e outros aspectos socioeconômicos, que estão intimamente ligados aos problemas. E isso também acarreta um conjunto de violências, as violências contra a mulher, que também são mais fortes nesse âmbito. 
O Estafeta: Qual é o papel do Estado na promoção de igualdade entre homens e mulheres?
João Ignácio: Em relação ao papel do Estado, há certa generalidade. Temos, primeiramente, a importância, já medida internacionalmente, de que a legislação, e isso vem desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, além de um conjunto de leis pelo mundo que visam a igualdade entre gêneros, julgue todos iguais perante a lei, dentro dessa máxima da modernidade jurídico política. E alguns países acabam avançando, tentando ter uma legislação mais específica que possa garantir o máximo possível essa igualdade, com penalizações e sanções para empresas e organizações que pratiquem salários diferentes, fora a própria questão da violência. Como exemplo, no Brasil, temos a Lei Maria da Penha. 
Em tese, a igualdade já estaria configurada, mas a desigualdade acaba convivendo com esses princípios constitucionais, legais, e isso leva, num primeiro momento, à elaboração de mais leis que tentem minimizar esses problemas de violência e desigualdade.  Depois das leis temos as políticas públicas, que têm um papel efetivo e importante na medida em que podem transferir renda, privilegiar benefícios e serviços. Geralmente, as famílias usuárias dos programas de assistência social são chefiadas por mulheres. Porque, infelizmente, é um contexto das condições de pobreza, de miséria, da população em situação de mais vulnerabilidade e risco, especialmente os riscos socioeconômicos, os riscos da violência, a população empobrecida, a despeito de que existe violência de gênero em todas as classes sociais. Mas também, dependendo, as pessoas começam a ter mais condições de procurarem auxilio, proteção, e até a firmarem seus direitos. 
O Estado, de maneira geral, tem papel importante, que começa nas leis e segue nas políticas públicas. Porém, também é importante que os órgãos de fiscalização e controle, as polícias e os próprios órgãos do Judiciário estejam preparados para receber bem as mulheres. Por isso, são importantes as delegacias das mulheres, como também é indispensável que haja uma preocupação para que elas não sofram nenhum tipo de preconceito, bullying, mesmo quando estão fragilizadas buscando auxílio. Isso vem provar que uma sociedade assim é muito homofóbica e machista. 
O Estafeta: No Brasil, muitos homens acreditam que o feminismo não importa. Por que ele é importante, inclusive para os homens? 
 

João Ignácio Pires Lucas

João Ignácio: Os homens seriam parte tão interessada quanto as mulheres, porque todos, de alguma maneira, têm ou tiveram uma mãe, uma esposa, filha, amigas, e a afirmação da igualdade de gênero beneficiará pessoas da sua própria família: mães, esposas, companheiras, filhas, mulheres, primas, tias…  A não ser que haja um profundo egoísmo social dos homens.
Toda a sociedade vem a ganhar quanto mais direitos as mulheres tiverem e quanto melhor salário elas ganharem. Isso aumentará a competitividade no trabalho e na política, os homens terão que disputar os postos com as mulheres, e no ponto de vista da sociedade, todos ganham. Teremos mais pessoas no mundo do trabalho, mais pessoas no processo político, levando em conta que Brasil é um dos países que tem a menor média de mulheres participando dos parlamentos e dos ministérios. A média mundial é em torno de 15%, e o Brasil não tem isso, ele perde para países dos mais diferentes continentes, da Ásia, da África, e da própria América Latina.
O Estafeta: Como o senhor vê o movimento feminista hoje, no Brasil?
João Ignácio: 
Tanto em relação ao mundo do trabalho quanto à violência, já há um conjunto de leis que visam igualdade. Temos as políticas públicas, que mesmo sofrendo oscilações e alterações, oferecem à família e à mulher alguns privilégios justamente porque estão mais relacionados à vulnerabilidade e risco. Também existe, no plano de vista do Judiciário, da polícia, uma preocupação de ter um atendimento mais adequado. Existem várias medidas que tentam incentivar que as mulheres possam exercer seus direitos. 
É claro que existe um elemento cultural, uma tradição machista e homofóbica, que não é privilégio da sociedade brasileira ou só de uma determinada cultura. Infelizmente, é bastante generalizado, ainda que alguns países já tenham resolvido essa questão. Se formos ver, o Brasil ainda estaria numa situação bastante complicada, já que temos umas das piores desigualdades de gênero do mundo, especialmente entre os países que têm algum grau de desenvolvimento.  Por exemplo, um país que tem uma desigualdade pior seria a Índia, porque a China tem uma desigualdade bem inferior à do Brasil. 
No ponto de vista político, percebemos cada vez mais que há uma preocupação. Vimos, nas últimas eleições, que algumas forças políticas ainda não sabem muito bem como lidar com isso; ora são preconceituosas, ora dizem que não são; mas é um caminho sem volta. 
Eu vejo que os movimentos sociais, hoje em dia, todos eles, de alguma maneira, trazem a questão da mulher, sejam os diretamente feministas, sejam os sindicais, estudantis, religiosos.
Se existe algum problema nas organizações da sociedade civil e movimentos sociais que trazem diretamente a questão de gênero e da mulher, esse problema é infinitamente inferior e muito menos problemático do que a violência, o machismo e a homofobia. E a forma que muitas pessoas caracterizam o feminismo como algo ruim serve somente para encobrir uma visão preconceituosa, machista e conservadora, que reproduz um país que ainda tem a desigualdade de gênero tão forte no dia a dia.
O Estafeta: Qual o papel da educação das crianças na promoção de condições iguais entre homens e mulheres?
João Ignácio:
A educação é um elemento que poderia modificar muito esses padrões culturais a médio e longo prazo. Várias diretrizes curriculares da educação básica e ensino superior têm preocupações diretas com essa questão do gênero, bem como com o empoderamento das mulheres e de outros setores da sociedade, como a população LGBT. 
Temos visto que as verdadeiras mudanças, mais do que no “canetaço” da lei ou na questão da polícia ou do Ministério Público, acontecem no dia a dia. Comento muito, na sala de aula, e pergunto para as alunas que, às vezes, em atividades, relatam como é difícil em casa, ou às vezes têm filhos, ou maridos, mas de qualquer maneira sempre comento se esses homens que são machistas não tiveram mãe; e se as tiveram, de alguma maneira elas também seriam corresponsáveis pela manutenção do machismo. 
Isso é um comportamento que já deveria vir de casa, a própria família praticando a igualdade de gênero, a própria família se livrando dos preconceitos. Mas isso é importante também no mundo da escola, porque, inclusive, pode-se trazer um trabalho histórico, cientifico, desfazendo-se das visões que naturalizam a desigualdade de gênero. Coloca-se isso como algo inevitável ou até da própria natureza humana, mas a ciência e o conhecimento servem para mostrar que isso não existe, são padrões culturais, e a própria escola tem um papel importante em resolver essa questão.
O Estafeta: Qual a diferença entre o feminismo e o machismo?
João Ignácio:
Fundamentalmente, o machismo se diferenciaria do feminismo na medida em que o feminismo é um movimento que surgiu para afirmação da igualdade de gênero, para defesa dos direitos das mulheres. Ele tem esse caráter político de empoderamento e de igualdade. Já o machismo é um movimento que visa a superioridade do homem em relação à mulher. Além dessa característica cultural, do predomínio do homem, ele também, politicamente, acaba interferindo na transformação dos princípios de igualdade em situações realmente concretas. O machismo também é motivador da violência contra a mulher, enquanto que o feminismo, em princípio, é de empoderamento, não tem o mesmo grau de agressividade. Ainda que tenhamos acompanhado alguns movimentos de protesto, de lutas de direitos que tenham tido e assumido algum grau de violência, como mostrado, por exemplo, no filme inglês As Sufragistas, onde algumas mulheres enveredaram para ações mais agressivas na conquista do direito de voto, o feminismo, em princípio, não se caracteriza por bater em homem, por machucar, por assediar…. Ao contrário, ele é um movimento que busca a igualdade e a afirmação da mulher. 

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