Concessões de parques e florestas nacionais no RS avançam com promessa de grandes investimentos

Aos poucos, a planície encarapitada num dos cumes do Rio Grande do Sul vai cedendo espaço à Mata Atlântica. Some o horizonte infinito dos Campos de Cima da Serra e surge a floresta densa, estreitando a trilha por degraus cavados na terra. Logo o barulho de correnteza prenuncia o fim dos dois quilômetros de caminhada. Costeando o mato sobre as rochas lisas do Rio da Pedra, chega-se ao topo da Cachoeira do Tigre Preto. É onde a natureza apresenta sua exuberância selvagem, com o vento quebrando a lei da gravidade para aspergir de volta no rosto do visitante as gotas jogadas no desfiladeiro de 800 metros de altura.

Ao fundo, descortina-se o cânion Fortaleza, um vale escarpado formado pelo derrame de lavas vulcânicas há 120 milhões de anos. É uma das belezas originais mais sedutoras do Estado, mas ainda inacessível a boa parte dos gaúchos. Situada no Parque Nacional da Serra Geral, em Cambará do Sul, a trilha é mal sinalizada e, por vezes, insegura, características que se repetem nos 17 mil hectares de uma das unidades de conservação ambiental mais procuradas por turistas no país, mas que não tem sequer banheiro ou bebedouro disponível. Aos fins de semana, o estacionamento fica repleto de papel higiênico, com a imundície humana emporcalhando a paisagem.

Em breve, essa situação deve mudar. Incluídos no Programa de Parceria de Investimentos (PPI), quatro áreas sob proteção federal serão concedidas à iniciativa privada no Rio Grande do Sul. Juntos, os parques da Serra Geral e Aparados da Serra, além das florestas nacionais de Canela e São Francisco de Paula, deverão receber cerca de R$ 425 milhões em investimentos durante 30 anos. Replicando o modelo norte-americano de gestão de parques naturais, a ação conjunta dos ministérios da Economia e do Meio Ambiente pretende repassar a administração do turismo nessas áreas. O objetivo é reequipar as unidades, melhorando a estrutura para multiplicar a visitação, sem abrir mão da fiscalização ambiental, cuja vigilância continuará a cargo do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

– É uma mudança de visão. Queremos democratizar o acesso aos parques. Hoje um idoso não tem condições de levar o neto para conhecer esses locais, em muitos não há sequer ponto de apoio aos turistas. A concessão vai melhorar a estrutura, gerar emprego e renda – projeta o secretário de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente, André Germanos.

O cânion Fortaleza será uma das primeiras atrações a receber melhorias. Concluída em janeiro, a licitação para o Aparados da Serra e o Serra Geral foi vencida pela Construcap, construtora responsável pela gestão do parque Ibirapuera, em São Paulo. A empresa pagou R$ 20 milhões pela outorga, valor 28 vezes superior ao lance mínimo de R$ 718 mil. A expectativa é de investimentos de R$ 262 milhões, sendo R$ 13,4 milhões nos primeiros anos. A entrada, hoje gratuita, passará a ser cobrada, com preço máximo de R$ 80.

As obras devem ter início logo após a assinatura do contrato, ainda sem data marcada. No Fortaleza, o edital prevê construção centros de apoio aos visitantes, posto de informação e controle, duas lanchonetes, lojas de conveniências, transporte interno, áreas de piquenique e camping, inclusive com espaço para acampamento de luxo, os chamados glampings.

Hoje, o acesso é precário. O asfalto cobre cerca de 13 quilômetros de uma estrada municipal, mas há outros cinco de chão batido até a entrada do parque, onde há apenas uma edícula próxima à porteira. Lá dentro, são mais 4,5 quilômetros de trajeto pedregoso. Não há guias nem brigadistas, ninguém para ajudar com dicas ou informações históricas e ambientais, tampouco local para descanso ou alimentação.

– É tudo lindo, um cartão-postal, mas não tem nem banheiro. Poderiam colocar umas passarelas também, para a gente entrar um pouco dentro do cânion e olhar lá para baixo. Eu pagaria por uma vista assim – afirma o empresário catarinense Jairo Cruzaro, que pela primeira vez visitava o Fortaleza na semana passada.

Apesar da rasa estrutura, a vista compensa o esforço. Embora mal sinalizadas, as quatro trilhas levam a lugares como a Pedra do Segredo, na qual só os mistérios da natureza explicam como uma rocha com cinco metros de altura equilibra-se sobre uma base estreita, à beira do perau. No alto do cânion, a 1.157 metros de altitude, a sensação de estar longe de tudo e perto das nuvens faz até esquecer de que não há proteção que separe um incauto da rés-do-chão.

Na cidade, a chegada dos investimentos é aguardada com ansiedade. Prefeito de Cambará, Ivan Borges diz que a concessão deve elevar o fluxo anual de 250 mil turistas para 1 milhão. Somente no feriado de 1º de maio, o município de 6,5 mil habitantes recebeu um contingente de visitantes equivalente à própria população, mesmo em meio à pandemia. Borges atribui à iminente concessão dos parques o crescimento do mercado imobiliário. Nos três primeiros meses do ano, a prefeitura arrecadou R$ 300 mil apenas com o imposto sobre venda de imóveis, valor correspondente a 20% das receitas mensais.

– Já estou conversando com a Corsan e com a RGE para duplicar o abastecimento de água e ampliar em 40% o fornecimento de energia. Daqui a pouco não vamos mais dar conta. Toda semana chega algum investidor novo querendo informações – conta Borges.

Investimentos em cascata

Donos da Corucacas, a primeira pousada rural de Cambará, Beatriz e Roberto Trindade têm R$ 2 milhões engatilhados para investir no próprio negócio. Há 26 anos explorando o turismo na região, eles começaram alugando quartos na estância da família, mas logo ergueram uma sede nova, com 10 apartamentos e três cabanas. Com reservas esgotadas até agosto, pretendem construir mais 14 cabanas nas coxilhas onduladas da propriedade, todas voltadas para o pôr do sol entre as montanhas.

– O turista vem, mas sempre reclama da estrada e da falta de estrutura no parque. Então estou só esperando a assinatura do contrato (de concessão) para fazer o investimento. Vou me endividar, mas com a tranquilidade de que o aumento na procura vai fazer a dívida se pagar – comenta Roberto.

Com acesso em melhor estado e estrutura pouco mais robusta, o cânion Itaimbezinho fica a 18 quilômetros de chão batido do centro de Cambará. A recepção é feita por quatro voluntários num prédio de dois andares que funcionou como hotel nos anos 1980 e hoje serve de base administrativa do ICMBio. Não há guias. Dali, parte-se em direção a duas trilhas, Vértice e Cotovelo. Com 1,5 quilômetro de extensão, o caminho do Vértice leva a uma das extremidades da fenda, de onde a terra se abre num abismo de 720 metros de fundura. Há três mirantes no trecho – todos construídos nos anos 1990 e com parte da estrutura de madeira se desmanchando –, de onde é possível observar as cascatas das Andorinhas e do Véu de Noiva.

Mais longa, a trilha do Cotovelo tem 3,2 quilômetros e uma surpresa desagradável. Símbolo do descaso, uma base desativada à margem da senda serve de cemitério para viaturas antigas do ICMBio. Junto a casas em ruínas, duas motos, um trator, seis caminhonetes e duas kombis enferrujam em meio à mata nebular. A despeito da agressão ambiental, o estrago aos olhos é compensado mais adiante, quando um mirante coloca o turista de frente ao despenhadeiro, com uma cachoeira derramando o Arroio Preá 500 metros abaixo e urubus planando sobre as correntes de ar que se formam entre os dois lados do abismo. Com sorte, é possível observar o voo de gralhas-azuis, pica-paus dourados e grimpeiros.

Juntos, os parques Aparados da Serra e Serra Geral abrigam 10% das espécies de aves existentes no país. As unidades ainda são refúgio de mamíferos carnívoros como graxaim, leão baio, mão pelada, jaguatirica, suçuarana, lobo guará, gato mourisco e cachorro do mato, entre outros. Em 16 de maio, o analista ambiental Rodrigo Cambará encontrou numa estrada interna uma paleotoca de preguiça gigante. Cavada na terra, a toca paleontológica abrigou a espécie da era do gelo que viva nas redondezas há cerca de 20 mil anos.

– Elas alcançavam quatro metros de altura e pesavam quatro toneladas. Faziam tocas como essa para se esconder dos predadores, entre eles o tigre dente de sabre. Hoje serve de abrigo ao zorrilho e outros animais silvestres do parque – explica o biólogo.

Cambará mantém a localização da toca em segredo para evitar a ação de curiosos. Há sete anos no ICMBio, ele atuou na Amazônia e na caatinga baiana antes de ser transferido para o Núcleo de Gestão Integrada Aparados da Serra Geral, onde junto com outro servidor de carreira já aposentado é responsável pela fiscalização dos mais de 30 mil hectares das duas unidades de conservação. Atualmente, Cambará fica lotado no posto Rio do Boi, distante 22 quilômetros do Itaimbezinho descendo a Serra do Faxinal em direção à Praia Grande (SC). 

O local abriga uma das trilhas mais disputadas da região, percorrendo os cânions por baixo, rente aos paredões e em meio a cursos d’água, num percurso que pode levar até oito horas na companhia de adoráveis borboletas e importunos pernilongos.

Com a concessão, os dois parques receberão ao menos 56 intervenções. A exemplo do Fortaleza, no Itaimbezinho haverá reforma da estrutura e criação de novos espaços de lazer, como parque infantil e área para banhos de rio, além de lojas e restaurantes. A projeção é triplicar a visitação aos finais de semana, hoje estimada em 4 mil pessoas. Em Praia Grande, a expectativa é que o incremento no turismo gere novas oportunidades aos 7,3 mil habitantes.

– Há muito tempo espero por isso. Hoje tenho 11 funcionários e sirvo 280 refeições aos domingos. Minha ideia é dobrar o número de empregados e abrir também à noite tão logo essa concessão saia – diz o empresário Carlos Ramos, dono do Restaurante Carlinhos.

Turismo de contemplação

Um estudo do ICMBio mostra que visitantes gastam R$ 2,4 bilhões ao ano nos municípios de acesso a parques e florestas. A movimentação gera 90 mil empregos, R$ 1,1 bilhão em impostos e R$ 2,7 bilhões em renda, acrescendo R$ 3,8 bilhões ao PIB. Em 2018, cada R$ 1 investido no instituto produziu outros R$ 15 na cadeia econômica. São cifras tímidas perto dos US$ 17 bilhões movimentados por ano pelos parques nacionais americanos, mas não falta entusiasmo aos empreendedores gaúchos.

Em Canela, após 25 anos trabalhando com turismo, a empresária Any Brocker quer voltar às origens da família, uma das proprietárias originais do Parque do Caracol, que hoje recebe 400 mil visitas anuais. Apostando no aumento da procura pela Floresta Nacional de Canela, ela pretende investir em passeios numa área de 200 hectares no Vale da Lajeana, aos pés da cascata do Caracol. A ideia é oferecer roteiros por uma região praticamente intocada.

– Vamos fazer um investimento inicial de R$ 1 milhão. Estarei contando a minha própria história. Meus avós viveram ali e eu comecei trabalhando com turismo ambiental, mas na época ninguém queria pagar para andar no mato. Agora, a concessão da floresta deve atrair ainda mais gente para esse tipo de roteiro – conta Any, que tem uma clientela anual de 80 mil turistas.

Com 557 hectares, a Floresta Nacional de Canela deve receber R$ 93 milhões em recursos privados – R$ 9 milhões nos dois primeiros anos. Previsto para julho, o edital prevê lance mínimo de R$ 449 mil e cobrança de no máximo R$ 50 pela entrada. Lá dentro, o visitante poderá fazer trilhas a pé, a cavalo ou de bicicleta, circulando por araucárias centenárias em caminhos acarpetados de pinhão. Dois servidores e cinco brigadistas atuam na sede, uma casa de dois andares com telefone por satélite e internet instável, embora a apenas seis quilômetros do centro da cidade. Há ainda outros quatro prédios, dois habitáveis. Um caramanchão com churrasqueiras e 12 mesas está prestes a desabar.

O leilão está marcado para 12 de julho. Além da reforma dos prédios, o concessionário deverá oferecer serviços de hospedaria e alimentação, montar loja de souvenirs e investir na infraestrutura, com ao menos três postos de combate a incêndios. O cenário atual, sem banheiros, pontos de apoio e sinalização escassa, não intimida visitantes de vários locais do mundo, atraídos pela exuberância da flora e fauna, com xaxins de três metros, mais de 60 nascentes e 200 animais nativos, alguns deles taxidermizados num pequeno museu, como macaco-prego e tamanduá. No local, há uma instalação artística pela qual o visitante entra numa araucária e escorrega até as raízes da árvore.

Onipresente na paisagem serrana, essa espécie de pinheiro deu origem também à Floresta Nacional de São Francisco de Paula, área de 1,6 mil hectares situado a 21 quilômetros do centro da cidade, os primeiros 15 cobertos por asfalto. Concebida para permitir a exploração sustentável de madeira na região, no auge das operações abrigou 99 famílias, todas vivendo do manejo da mata, do pinhão e também produzindo erva-mate. Transformada em unidade de conservação ambiental em 1968, a floresta tem licitação prevista para 29 de julho, com lance inicial de R$ 289 mil.

Das quatro áreas que serão concedidas à iniciativa privada, é a única que permite pernoite (R$ 72 por pessoa), hospedando visitantes em cabanas que antes serviam de residência aos moradores originais. Há também cobrança de ingresso de R$ 11 – o edital prevê preço máximo de R$ 50. As melhorias, orçadas em R$ 4 milhões nos primeiros anos e em R$ 70 milhões no decorrer do concessão, preveem reforma da estrutura atual, com cerca de 20 casas de madeira, incluindo sinalização, segurança e comunicações, além do trinômio hospedagem, alimentação e comércio. O objetivo é saltar dos 5 mil visitantes anuais para 40 mil logo nos dois primeiros anos.

– O setor de hospedagem cresceu 1.200% em São Francisco de Paula. São 45 novas empresas chegando, algumas com investimento de R$ 30 milhões. A concessão da floresta vai aquecer ainda mais o setor. Com a pandemia, aumentou muito a procura por passeios ao ar livre, sobretudo nos parques florestais. O turismo de contemplação será um dos mais buscados – projeta o prefeito de São Francisco de Paula, Marcos Aguzzolli.

Das cinco trilhas disponíveis na floresta, a mais procurada é a da Cachoeira Bolo de Noiva, uma caminhada de 1,8 quilômetro que leva a uma escadaria íngreme de 61 degraus de barro e madeira, culminando num lajeado entre duas cascatas. À esquerda, a cortina espumosa da queda d’água. 

À direita, outro desvão forma uma piscina natural inacessível sem intervenção humana. Nos demais caminhos há um mirante à beira de um perau, um bosque de castanheiras forrado de cogumelos e, nos limites do território, o Morro dos Cavalos, uma coxilha sobre a coroa das araucárias esparramadas no vale lá embaixo, onde uma águia-cinzenta surgiu em rasantes circulares como se desfilasse para o fim dessa reportagem.

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado.

error: Conteúdo bloqueado.