Anna Vera Boff: Vida, escrita e humanidade

Anna Vera Carolina Herlinger foi a filha caçula dos imigrantes judeus húngaros, Dr. Américo e Helena Herlinger.  Nasceu em 15 de setembro de 1937, em Veranópolis. Teve como irmãos Martin, Eva e Ignez Érica, todos já falecidos.

Viveu num lar repleto de livros, o que a tornou intimamente próxima à leitura e, desde menina, eles se transformaram no seu grande tesouro, não medindo esforços para obter qualquer título desejado. De mente aberta, além do livro físico, também fez uso das plataformas presentes na evolução cultural, lendo e-books em seu Kindle e computador. Portadora de grande cultura e sabedoria profunda, divulgava a importância da leitura junto à comunidade local e regional.

Em 14 de setembro de 1957 casou-se com Zeno Paulo Boff, falecido há 11 anos, adotando o nome Anna Vera Boff. Juntos tiveram os seus filhos: Paulo Américo, casado com Odete, pais de Davi; Fábio, casado com Márcia, pais de Raquel, Natália e Cláudio; Eduardo Luís, casado com Rolcinéia, pais de Isadora. Com eles, viveu o amor e a alegria de cada dia.

Generosa com seus três filhos, soube respeitar e apoiar as escolhas de cada um. Queria bem às noras como filhas e tornou-se a avó acolhedora, atenciosa e amorosa. Era alegre, gostava de fazer pequenas e inesquecíveis surpresas. Foi exímia cozinheira, preparando pratos saborosos e aberta para provar novos sabores.  Sobre receitas, fazia questão de dizer: “a olho”, “é só misturar: bom com bom dará bom!”

Em Porto Alegre, cursou o Magistério no Colégio Bom Conselho e a Licenciatura em Educação Física. Quando seus filhos ingressaram na Universidade, retomou os seus estudos, concluindo a Faculdade de Letras, habilitação em Língua e Literatura de Língua Portuguesa e Inglesa na atual Universidade de Caxias do Sul, bem como Pós-Graduação em Literatura. Foi professora de Educação Física, Língua Portuguesa e Literatura nas Escolas Virgínia Bernardi, Felipe dos Santos, São Francisco de Assis e São Luiz Gonzaga.

Os animais foram uma grande paixão e os sentia como presença de afeto em seu lar. Também se dedicava a bordar ponto cruz em toalhas para presentear seus familiares. Nos três últimos anos, escolheu bordar telas, transformando-as em tapetes e almofadas. Herdou de seu pai o gosto por filmes e, em família, esse era um dos assuntos sobre os quais gostava de conversar. Em sua análise, sempre um ponto de vista inimaginado.

Quando completou seus 50 anos, a intensidade da leitura a fez transbordar em textos. Contava que se desafiou a escrever uma história de vida que a impressionou. Dessa experiência, quis aprender a redigir contos, considerando critérios literários. Para aprofundar esse conhecimento, todas as terças-feiras, durante um ano, frequentou o Curso de Criação Literária da PUC/RS, sendo aluna do Professor Luiz Antônio de Assis Brasil. A jornada de estudos era encerrada com reuniões na casa de colegas, momento no qual as produções eram avaliadas pelo mestre e pelas participantes.

Envolver-se nesses estudos e interagir nesse espaço cultural e artístico foi o estímulo para Anna Vera fazer de sua escrita um caminho para revelar percepções singulares e sensíveis sobre histórias e assuntos ouvidos e lidos em revistas e jornais que a emocionassem. Dona Vera, como era chamada pela maioria das pessoas, nutria profundo respeito à diversidade humana. Através de seus escritos buscava expressar de forma genuína sentimentos presentes nas pessoas com as quais dialogava, criando e recriando-os.

Participou da publicação Contos da Oficina 2 (1989), com as produções “Confronto” e “O Encontro”, e da obra Mosaico (1992) com os contos “Inspiração”, “Lia” e “Diferenças”.

Seus contos “O Início” e “Joana” foram publicados em 1999, na Coletânea Literária da Edição Comemorativa aos 32 anos de Fundação do Grêmio Literário Castro Alves – 1958-1990.

Participou do Concurso Literário “Histórias de Xadrez – Coletânea Concurso Metrópole Xadrez Clube de Literatura” (1991) com a narrativa “Rainha e Bisturis”, homenageando seu pai, médico e enxadrista.

Seu conto “Minha História” foi merecer do 2º lugar no 5º Concurso Literário Prosa e Verso, no ano de 1996, organizado pela Prefeitura Municipal de Caxias do Sul.

Seu poema “Homenagem a Veranópolis”, publicado no Jornal O Estafeta em 13/8/1997, recebeu reconhecimento da comunidade durante os festejos do Centenário de Emancipação do Município de Veranópolis.

Em 1998, a convite da Província de Porto Alegre, escreveu o poema “Centenário da Chegada das Irmãs de São José em Garibaldi”, sendo publicado nos anais das comemorações.

Participou da coletânea “Memória – Imigração Judaica no Brasil no século XX” (1999), organizado pelo Instituto Cultural Judaico Marc Chagall do Museu Judaico de Porto Alegre, com a história de seus pais intitulada “Uma Família Judia numa Comunidade Italiana”.

Em 2003, seu conto “Mãos e Temperos” recebeu destaque no Concurso de contos “Tempero nosso de cada dia”, promovido pelo Banco Real/SP, e integrou a antologia “Todas as Estações”, segundo livro. Seu artigo “Dr. Américo Herlinger, Irmãs de São José e Hospital Nossa Senhora de Lourdes: uma parte da história da saúde em Veranópolis” foi publicado no Jornal O Estafeta de Veranópolis/RS, em 21/5/2003, contribuindo para esclarecer aspectos culturais da cidade. Ao longo desse ano, escreveu a obra “O Inesquecível Germano Osmarini”, narrando a vida desse imigrante farroupilhense, pai de sua cunhada Maria Herlinger. Com o apoio da Prefeitura Municipal de Farroupilha, o livro foi publicado em 2004.

No ano de 2009, recebeu Menção Honrosa pela participação no Concurso Literário organizado pela Fundação Casa das Artes e Biblioteca Pública Castro Alves de Bento Gonçalves, com o já destacado conto “Mãos e Temperos”.

Publicou as antologias de contos “De muros, de redes, de condes e de pacotes” (2008) e “A terra vem do leite” (2010), dando visibilidade às vertentes e temáticas sobre as quais construiu uma identificação: imigração judaica e italiana, contrastes humanos, a vida das mulheres – condição que sempre a inquietou, a transitoriedade da vida, dores e alegrias, transformações de fatos e de realidades, vida ao subjetivo através de objetos e fantasias.

Foi no ano de 2011 que auxiliou sua irmã Eva a escrever a história de seu pai, o médico Américo Herlinger, para a obra “Doktors: Contos de Memória”, organizada por Claus Michael Preger, que narra a história e vida de médicos alemães, austríacos e húngaros no Rio Grande do Sul durante o século 20.

Seu conto “Condes e Filhos de Condes” recebeu premiação de 2º lugar no II Concurso Literário Mansueto Bernardi (1995) e o conto “Julho 2050” foi merecedor do 1º lugar no 18º Concurso Literário Mansueto Bernardi (2016) de Veranópolis/RS, ambos na categoria adulta.

Seu professor Assis Brasil assim escreveu sobre ela “Anna Vera sabe o que diz. Conheço a pessoa gentil, afetuosa e paciente, alguém que dá gosto de conversar. Mas conheço também, e talvez melhor ainda, a escritora. É o tipo de personalidade literária que foi paulatinamente consolidando e aperfeiçoando o seu talento. (…) A arte é isso mesmo” (apresentação da sua obra “De muros, de redes, de condes e de pacotes, 2008).

O escritor Uili Bergamin, na apresentação da obra “A terra vem do leite” (2010), assim se manifestou: “(…) Anna Vera Boff mostra que domina a técnica da escrita e tem conteúdo a passar (…). Na melhor tradição contista, Anna carrega o leitor pela mão e o acompanha através do início, meio e fim dos textos, criados a partir da observação do dia a dia. Munida de leituras e imaginação, a autora alcança o grau máximo da ficção”.

Nos três últimos anos, dedicou-se à releitura dos seus contos inéditos, visando publicá-los. Antes de seu falecimento, já estava no prelo e com o título por ela criado. Sua publicação ocorrerá in memorian, num momento futuro.

Porém, muito além da escrita, Anna Vera sabia ouvir e, para isso, convidava “senta aqui um pouquinho, toma um cafezinho, quer um chá? Vê se tem algum que gosta. Se não, pega um copo de água. Tem sobremesa na geladeira, te serve. Hoje não tenho nenhum doce, mas pega uma fruta”. E vinha provocação: “O que me conta? Como tem sido os teus dias?”. Dona Vera era profunda no seu entendimento, serena em suas manifestações. Mas era a sua simplicidade e consciência que encantavam a todos, seja em reservas quanto a manifestações públicas e até no seu modo de se apresentar. Valorizava e respeitava as pessoas empenhadas no trabalho e dispostas a viver objetivos. Era sensível ao humano. Em Dona Vera morava uma grande, discreta e nobre pessoa.

Anna Vera Boff viveu seus 85 anos no gosto pelas constantes aprendizagens, fascínio pela evolução cultural, tecnológica e artística. Seu legado nos aproxima da leitura das palavras e da leitura da vida, da escrita, das coisas simples, da cordialidade e da atenção às pessoas, da aceitação das surpresas da existência.

Dona Vera foi uma mulher à frente de seu tempo. Teve uma formação densa e profunda, foi portadora de uma sabedoria a qual nos cabe agradecer.

 

“E, leitor, de bom grado, entrego-te a tarefa: imagina um destino para esses personagens, lembrando-te de que todos são de minha consideração e estima. Afasta-os de veredas sombrias e mais tragédias, que prossigam em harmonia, pelo menos aparente, originada por excepcional tolerância e compreensão da complexidade humana”

(Anna Vera Boff, conto “Descaminhos”).

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