É possível ter covid-19 depois de vacinado com duas doses? Especialistas explicam eficácia na “vida real”

Relatos de pessoas que tiveram covid-19 mesmo após as duas doses dos imunizantes em uso no Brasil poderiam pôr em xeque a crença nas vacinas. O que especialistas no assunto explicam, no entanto, é que casos assim podem acontecer, sem que isso desabone a vacinação.

Explicações para o fenômeno não faltam, porém, uma delas ecoa com mais fôlego entre os médicos: nenhuma vacina garante proteção total, logo, ainda há um percentual de pessoas que pode ter a doença. 

— As vacinas não têm 100% de eficácia, inclusive para evitar que o vírus chegue no corpo da pessoa — justifica Carlos R. Zárate-Bladés, pesquisador do Laboratório de Imunorregulação do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 

No Chile, país que usou a CoronaVac em sua população, dados do Ministério da Saúde divulgados na segunda-feira (17), que abrangeram uma amostra de 10,2 milhões de chilenos, mostraram que o imunizante tem 65,3% de efetividade para prevenir se infectar e ficar doente, 87% para prevenir a hospitalização, 90,3% de efetividade para evitar o ingresso em uma unidade de terapia intensiva (UTI) e 86% na prevenção de morte. 

— Então, mesmo lá a gente não tem os 100% — observa Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). 

Menos hospitalização e óbitos

Mesmo sem a garantia de proteção 100%, as vacinas funcionam, e muito bem, para prevenir as formas graves da covid-19 e as mortes em decorrência da doença. Seychelles, no leste africano, por exemplo, tem mais de 60% da população completamente vacinada e tem testemunhado um aumento no número de casos diários de covid-19. 

— Há uma explosão de casos, mas não está acompanhado de aumento de internação nem óbito — diz a infectologista Raquel Stucchi, que é professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). 

Profissionais da saúde e idosos também viram os números de hospitalização e morte despencarem no Brasil depois de iniciada a campanha de vacinação. No Ceará, um levantamento feito pela Escola de Saúde Pública do Ceará Paulo Marcelo Martins Rodrigues (ESP/CE), vinculada à Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), divulgado no começo de abril, mostrou uma relação direta entre a vacinação e a queda nos casos de covid-19 entre os trabalhadores da saúde. 

— Temos poucas publicações em termos de artigos, mas os números dos governos têm demonstrado essa tendência de diminuição da doença em si e da proporção de casos moderados a graves. Em razão das novas variantes, houve um deslocamento da faixa etária para as pessoas mais novas. Temos que evoluir muito na vacinação para chegar a esses grupos — conclui o presidente da SBIm. 

“Jamais pensei que podia ser covid-19”

Com o esquema vacinal completo desde fevereiro, a enfermeira Jessica Pinheiro Bubols, 28 anos, conta que “caiu para trás” quando viu o resultado positivo do teste de covid-19 que fez em 27 de abril. A profissional, que atua no atendimento a pacientes com a infecção em um grande hospital da Capital, não tinha contraído o vírus desde então. Os sintomas começaram leves, levando Jessica a supor que era rinite: 

— Estava com muita coceira no nariz, espirrando. Aquela sensação de nariz ressecado. Jamais pensei que podia ser covid-19.  

Após mais uma noite maldormida, a enfermeira foi trabalhar normalmente. 

— Quando eu cheguei, disseram: “Tua aparência está pior, vai coletar”. Fiz o teste e voltei para casa. No fim da tarde, tive uma sensação de corpo quente. 

Por volta das 19h, ela acessou o exame, que acusou a doença. Incrédula, ela ficou parada por alguns minutos olhando para o resultado, até assimilar a situação. Uma hora depois, a doença começou a se manifestar com mais intensidade. Uma dor de cabeça descrita como insuportável surgiu e demorou para ceder. 

Depois desse dia, Jessica teve uma progressão dos sintomas: febre, perda do olfato e do paladar e um cansaço inexplicável, que a obrigou a escovar os dentes sentada. Até mesmo ao falar se sentia esgotada. 

— Era uma sensação de que eu falava subindo escadas.  

Foi só depois do oitavo dia que os sintomas começaram a perder força. Quase um mês após o episódio, Jessica ainda relata cansaço e diminuição do olfato e do paladar. 

— Eu me surpreendi. Apesar de saber que a eficácia da vacina não é 100%. Me assustei quando não consegui escovar os dentes. Agora, falo para a minha equipe: “Eu estava vacinada e peguei, precisa ter cuidado redobrado”. 

Vacinação em estudo x vacinação na vida real

Outro ponto que não pode ser desconsiderado na hora de entender a eficácia das vacinas em proteger da doença é a comparação dos resultados dos imunizantes em ensaios clínicos com sua aplicação na prática. Em uma pesquisa com 10 mil voluntários, por exemplo, é mais difícil encontrar pessoas doentes após a vacinação do que em uma população de milhões de pessoas. Quando a aplicação extrapola para a casa dos milhões, fica mais fácil identificar esses raros casos, reforçam os especialistas. 

Além disso, o pesquisador Carlos R. Zárate-Bladés acrescenta que, dentro dos ensaios clínicos, a população também é muito bem controlada. Sabe-se, entre outras coisas, idade e dados sobre o estado de saúde dos voluntários. Ao ampliar a vacinação, é impossível manter o controle sobre as individualidades de cada vacinado. 

— Quando se tem milhões de pessoas, você não está controlando as eventualidades de cada uma. Elas podem ter comorbidades que nem sabiam. Então, mesmo vacinadas, são suscetíveis a casos mais complicados — argumenta Zárate-Bladés. 

Somado a todos esses aspectos, destaca o pesquisador da UFSC, cada organismo tem um sistema imunológico único, ou seja, a resposta à vacina pode ser diferente. 

Como as variantes do coronavírus podem interferir nas vacinas?  

Para além do fato de nenhuma vacina ser 100% eficaz, há de se considerar o aparecimento das variantes dos sars-cov-2, vírus que originou a pandemia e que foi usado para produção das vacinas. Pelo mundo, há registro de, pelo menos, quatro delas: a brasileira, batizada de P.1, a do Reino Unido, a sul-africana e a indiana.  

No Brasil, complementa Carlos R. Zárate-Bladés, pesquisador do Laboratório de Imunorregulação do Centro de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), há, no mínimo, mais três mutações de relevância clínica, mas não tão graves como a P.1. 

De acordo com Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), por ora não se pode concluir se a P.1 é mais mortal ou não, afinal, ela surgiu no mesmo período em que houve um aumento nos casos e de colapso no sistema de saúde. Dessa forma, não é possível estabelecer se ela foi mais grave ou se a falta de acesso ao sistema impactou mais nos números de quadros graves e mortes. Ainda assim, diz, o presidente da SBIm, a P.1 não pareceu ser tão relevante para a eficácia das vacinas: 

— As variantes são um problema, pois sabemos que podem provocar o escape natural, aquele que mesmo quem já teve covid-19 pode ter de novo, e o escape das vacinas, que já foi observado na mutação sul-africana. Da nossa variante (a brasileira), o que temos é que ela não parece ter um escape tão importante quanto a sul-africana. 

Para entender o processo de surgimento de uma variante, o pesquisador da UFSC faz uma analogia entre o vírus e um animalzinho doméstico solto em uma mata. Nessas condições, se pressupõe que o bichinho vai ter um comportamento diferente do que tem em casa. O mesmo vale para o coronavírus, que vai precisar se comportar de forma diferente para enfrentar a pressão de cada sistema imunológico.  

— Ele encontra formas de escapar, então, cada indivíduo está potencialmente gerando novas variantes o tempo todo. E se você insere esse novo fator, que é muito variável de uma pessoa para outra, enfrentando diferentes sistemas imunológicos, temos um fenômeno biológico muitíssimo mais complexo. Essas outras variantes que circulam podem não ser relevantes, mas não quer dizer que não façam doenças complicadas em algumas pessoas — fala o pesquisador, explicando o porquê de as variantes interferirem nas vacinas. 

Por que é preciso manter os cuidados mesmo após a vacinação completa 

Ter menos de 10% da população completamente imunizada e o relaxamento dos cuidados por uma parte dos indivíduos – vacinados ou não – também pode interferir nos resultados da vacinação. 

— Pessoas que não estão (vacinadas), e mesmo aquelas que já fizeram vacinas, não têm o potencial protetor que a gente espera — argumenta Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). 

A infectologista Raquel Stucchi reforça que, mesmo os brasileiros vacinados precisam manter o distanciamento social, não promover aglomerações, manter o círculo de pessoas limitadas àquelas de convívio diário e usar máscaras. 

— Quando muda isso? Ao que tudo indica, é preciso ter, no mínimo, entre 60% e 70% da população vacinada. Até lá, e nesse andar da carruagem, isso ocorrerá no ano que vem — especula. 

Fonte: GZH

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